quinta-feira, 12 de março de 2009

Sétima entrevista - Senhor Vogue


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julho 78


A entrevista que segue apresenta alguns aspectos que a distinguem das outras. Na realidade, trata-se de uma conversa entre Lula e Ruy Mesquita (diretor de O Estado de São Paulo e do Jornal da Tarde), sua família e alguns convidados. Conversa de quatro horas, na residência do jornalista, durante a qual foram abordados praticamente todos os aspectos da realidade brasileira. O diálogo, gravado, rendeu cerca de 140 laudas datilografadas, das quais apenas alguns trechos foram reproduzidos, resultando um texto final de 15 laudas datilografadas, das quais apenas alguns trechos foram reproduzidos, resultando um texto final de 15 laudas. Dadas as características peculiares desta entrevista, resolveu-se conservá-la como foi publicada. Isso porque ela foge da reprodução pura e simples de perguntas e respostas: entremeando umas e outras, há as observações do entrevistador, suas opiniões, sua avaliação sobre o entrevistado. Em vários trechos, a palavra de Lula não aparece diretamente mas através do que nos diz o jornalista. Outro aspecto interessante neste trabalho é que, sendo o entrevistador não apenas um jornalista, mas um empresário jornalista, de opiniões amplamente conhecidas, a entrevista toma muitas vezes o caráter de debate de idéias. Com habilidade, tenta-se fazer com que Lula dê definições políticas e ideológicas categóricas. Com clareza e sem medo (como, aliás, nota o entrevistador), Lula se define pela participação do trabalhador na vida política do país, por um sindicalismo livre e atuante, pela necessidade de que o Brasil encontre seus próprios caminhos, com a participação indispensável da classe trabalhadora como ‘força viva’, e não apenas como instrumento dos que estão no poder.


Comecei repetindo o que disse ao Luís Carta (editor de Senhor Vogue) sobre a impressão que me ficou da entrevista na TV Cultura (programa Vox Populi), que me revelou, para grande satisfação minha, alguma coisa de realmente novo neste país politicamente traumatizado há quatorze anos, e novo num setor que não estava estagnado há apenas 14 anos, mas desde os tempos do Estado Novo, quando foram lançadas as bases e as estruturas do movimento sindical brasileiro contemporâneo. E o que me foi revelado de novo e de agradavelmente surpreendente foi justamente o fato de que, durante 14 anos de silêncio politicamente imposto, de letargia aparente, o edifício construído sobre aquelas bases e aquelas estruturas fora aluído por um movimento que brotou espontaneamente, no seio do próprio proletariado de São Paulo, em estado de pureza, incontaminado política ou ideologicamente e que se preocupa precipuamente em manter rigorosamente assim. O Lula que me surgia no vídeo, lúcido, objetivo, com uma clareza de raciocínio que se refletia na incrível facilidade de expressão, parecia o produto de um ambiente político totalmente diferente daquele que tem produzido as nossas atuais lideranças (ou pseudolideranças) políticas, eclesiásticas, intelectuais ou estudantis. E, no entanto, sua liderança nascera, evidentemente, nesse mesmo ambiente político. Como foi isso possível? Terá sido, talvez, porque foi o meio sindical o mais duramente atingido pelo estilo político do regime arbitrário implantado no país há 14 anos, a ponto de ter sido abandonado, ou pelo menos relegado a segundo plano pelos profissionais do proselitismo político e ideológico que continuaram a atuar em outra áreas, mais ou menos clandestinamente, durante esse período? É o próprio Lula quem responde: - “Vamos ver se a gente consegue arrumar mais amigos do que inimigos. Em primeiro lugar, eu quero deixar bem claro que procuro ser honesto comigo mesmo quando eu respondo alguma coisa. Eu gostaria de deixar bem claro ao senhor que, às vezes, se eu responder alguma pergunta de uma forma que possa desagradar, não tenho o objetivo de ofender ninguém, mas tenho o objetivo de dizer aquilo que sinto, aquilo que eu tenho vontade de dizer.”


 Peço a ele que não me chame de senhor. E o seu espírito irônico se manifesta pela primeira vêz: - “É muito difícil aprender a tratar os outros de você; mas a gente se acostuma...” - “Eu tenho o objetivo de dizer aquilo que sinto” – continua Lula. - “Com relação ao surgimento do movimento sindical de hoje, eu acho que está mais ou menos patenteado que quando um homem não tem compromisso com ninguém, quando um homem não é corrupto, quando um homem só tem compromisso com suas consciência ou com aquilo que ele representa eu acho que as coisas se tornam mais fáceis.” - “Comigo aconteceu uma coisa muito interessante. Eu era, até outro dia, um dirigente sindical igual a todos os outros...”.


- Mas, em outubro de l975 ele fez uma viagem ao Japão a fim de participar de um congresso dos trabalhadores da Toyota, e, lá no Japão, soube da prisão do seu irmão, que era vice-presidente do seu sindicato. E ele, até então, era um dirigente sindical igual aos outros porque, como todos os outros, sentia medo. -“Eu achava que a prisão era o fim do mundo, tinha preocupação com minha família, com meu filho, com minha, com minha mãe”. De volta do Japão, ouvindo do irmão o que ele sofrera na prisão, resolveu tomar uma posição. - “Porque eu acho que tudo aquilo aconteceu com meu irmão poderia acontecer a qualquer cidadão brasileiro. Naquele momento o medo desapareceu. E, não tendo compromisso com ninguém a não ser com os trabalhadores, resolvi abrir a boca e dizer aquilo que qualquer trabalhador teria vontade de dizer se fosse colocada a ele, diante de um microfone, uma pergunta de um jornalista qualquer. E resolvi dizer algumas verdades e nunca esperei que essas verdades, partindo de um trabalhador, pudessem causar a repercussão que causaram e até a ascensão política do Sindicato de São Bernardo no cenário político brasileiro”.


Para ele a liberdade de imprensa foi um fator muito importante. - “A gente lembra, por exemplo, aquela época em que o “Estadão” e o Jornal da Tarde publicavam aquelas receitas de arte culinária, aquele negócio todo... Quando a imprensa começou a ficar mais livre, começou, eu acho, a descobrir o trabalhador. E daí aconteceu tudo o que está acontecendo até hoje.


- “O trabalhador lê jornal, Lula? - “Veja, e nós analisarmos o trabalhador como um todo, ele não lê jornal. Eu acho que em todas as camadas sociais não são todos os que formam opinião. Eu acho que os trabalhadores que formam a opinião pública da classe trabalhadora lêem jornal.


O problema da ausência de uma divulgação pela imprensa, com regularidade, do que se passa no mundo sindical vem à baila. Lula critica, com total sinceridade, essa falha dos nossos jornais. Eu procuro explicar que a culpa é de ambas as partes. Ele aceita a observação: - “É fácil a gente entender que só vai ganhar espaço nos jornais quando você mesmo procura virar notícia, O que acontece até agora é que a maioria dos dirigentes sindicais têm medo de falar com jornalista.”


Ele, Lula, forçou a mão quando sentiu que podia exercer uma influência sobre a imprensa para que ela atuasse com honestidade, exigindo dos jornalistas que eles escrevessem não aquilo que eles pensam, mas que publicassem aquilo que ele dizia. - “Comecei a ter muitos contatos com jornalistas e comecei a enfrentar a imprensa como ela deve ser enfrentada: sem medo, sem nenhum objetivo de me tornar vedete ou coisa parecida.”


Explicando o medo que ainda sente a maioria dos dirigentes sindicais, Lula diz que parte dele se deve às vantagens de que goza um dirigente sindical e que são duras de perder.
- “É a partir daí que o movimento sindical se perdeu: se perdeu no comodismo que as antigas estruturas proporcionam.”


 Há corrupção, também, no meio sindical. Tento levá-lo a uma definição política. Digo que o problema que ele está expondo não é exclusivo do movimento sindical, mas é um fenômeno que ocorre em todos os setores da sociedade brasileira.
- Você não acha que é uma decorrência do sistema político? - “Concordo, mas sou obrigado a dizer o seguinte: eu acredito, acredito piamente, que neste Brasil existem algumas centenas de homens honestos.”


Ele se recusa a acreditar que cada um tem o seu preço: - “Acredito que existe uma coisa chamada dignidade, que existem muitos homens que têm essa dignidade. Não acredito que nenhum sistema político me fará mudar de idéia.”


Fala, então, no tempo em que vigorava no Brasil um regime diferente do atual, mas no que diz respeito ao comportamento das lideranças sindicais nada era diferente. - “Porque é muito mais fácil ser instrumento de alguma coisa do que ser independente, do que você querer criar inimigos, criar inimigos no bom sentido, você querer defender um ponto de vista que pouquíssima gente, nesta terra, tender a defender. Uma vez eu criticava – e, inclusive, por isso fui mal interpretado – o Montoro, criticava o João Goulart. É que esses homens, que foram tidos como deuses por muitos trabalhadores, nos momentos de sufoco que nós vivemos tiveram poderes para mudar um monte de coisas e não mudaram. Talvez tenham mudado alguma coisa, mas não chegaram a atingir a classe trabalhadora.”


 Neste ponto Lula mostra, mais uma vez, sua dedicação exclusiva à sua classe, sem qualquer conotação política ou ideológica. Para ele, seja quem for que esteja no poder, o trabalhador é sempre um instrumento dos que estão no poder: -“Eu não admito isso, não acho que a classe trabalhadora deva ser um instrumento; ela tem que ter uma força viva, tem que ter uma participação, porque, sendo maioria, jamais poderá ser tratada como minoria.”


Insisto na minha tese: - Você não acha que o sistema político, o regime político é decisivo para que possa atingir esses objetivos que você visa? Você não pensa às vezes, em termos de exemplos, quer dizer, o mundo de hoje, sendo uma vitrina de regimes políticos, sociais e econômicos, você não encontra nele algum regime que você gostaria de ver instalado no Brasil? - “Não, eu imagino que no Brasil, um dia, deve haver um regime que os próprios brasileiros criassem.”


- Você nunca estudou os sistemas sindicais de outros países? Qual é o que acha o mais perfeito, o mais aproximado do seu ideal? - “Para mim o sindicalismo alemão e o sueco são os que se aproximam daquilo que eu gostaria q eu existisse aqui.”


 E são, diz o Lula, porque é nesses países que os trabalhadores têm mais voz ativa, maior participação, maior influência política e social. E conclui: - “Muita gente acha que tem de haver uma reforma política para que haja uma reforma sindical. Eu, às vezes, me pergunto se não poderia ser diferente, se não deveria haver uma reforma da estrutura sindical brasileira para que houvesse uma reforma política.”


A conversa sobre os modelos sindicais vai longe, com observações sobre o sindicalismo inglês e o norte-americano que, para Lula, é muito mais reivindicatório do que político, enquanto o alemão e o sueco são mais politizados. De repente, Lula volta ao movimento sindical brasileiro e aos seus desvios, que critica impiedosamente: - Há 14 anos praticamente a classe trabalhadora brasileira estava dormindo. Nós tínhamos com ponte histórica e, aí, sem ofensa nenhuma, gente com o Werneck Viana e outros que escreveram muito sobre as greves de Osasco, a passagem de Contagem, aquele negócio todo. Se a gente analisar friamente, chega à conclusão de que a greve de Osasco saiu muito mais da Faculdade de Filosofia do que dos próprios sindicatos; de que foi uma greve em que a única coisa que a classe trabalhadora ganhou foi o AI-5 nas costas. Isto, porque muita gente não tem coragem de dizer. Porque nos dias atuais é antipático dizer isto, porque a greve de Osasco é exaltada como um parâmetro histórico nesta terra.”


- Olha, Lula, só gente como você tem condições para dizer o que está dizendo impunemente. Porque se eu disser, vão dizer que eu estou fazendo isso porque sou vendido ao capitalismo americano, etc. Lula conclui: - “Pois bem, então a classe trabalhadora vivia, há 14 anos, um profundo sono, eu diria um profundo sono político, porque produzir ela produziu como nunca. Ela foi explorada.”


Pergunto como é que foi possível acontecer o que está acontecendo hoje, depois de 14 anos de sono. - “Eu estou dizendo 14 anos, mas a classe trabalhadora, ou o sindicalismo brasileiro, está dormindo desde que foi criado.


Ele alertou os empresários, em outubro do ano passado, quando teve reuniões com mais de 30 deles. Ele teve um encontro com o senador Portela e o advertiu de que a caminhada da classe trabalhadora era irreversível e de que, a curto prazo, iria estourar com uma tomada de posição muito séria. - “Quando estourou a greve, para muita gente foi novidade – pô, uma greve no Brasil! Para mim, ela era para ter acontecido, esteve para acontecer na questão da reposição salarial.”


- Por que neste momento preciso?

Lula é cauteloso:
- “Eu poderia dizer o seguinte: há alguns antecedentes que a gente tem que abordar e eu tenho me negado a abordar isso.


Mas, agora, ele aborda. E faz a crítica da política salarial do governo, fala do dissídio coletivo que, pela primeira vez na história do sindicalismo brasileiro, ‘tivemos a coragem de desmascarar’, denuncia a decretação do fator de reajustamento por um homem apenas, o que transforma a luta dos sindicatos por melhores salários numa farsa. - “Eu não pedi índice. Eu fiz questão de provar ao trabalhador que tudo o que nós tínhamos feito até então, em termos de dissídio, era mentira e eu ele, trabalhador, é quem tinha que resolver os problemas dele, que não esperasse que os políticos resolvessem, que não esperasse que o governo resolvesse.”


 Pergunto se ele acha possível um sistema em que cada grupo de trabalhadores discuta com seu patrão, quer dizer, em que, dentro de uma mesma categoria, uma empresa que pode dar mais dê mais e uma que só pode dar menos dê menos. - “Veja, na minha cidade eu tenho duas empresas, mais ou menos próximas. Uma, a Volkswagen, paga Cr$ 11,00 por hora para um trabalhador não qualificado; outra, a Brastemp, paga Cr$ 6,90, e nem por isso deixa de existir fila na porta da Brastemp e na porta da Volkswagen. E tem aquelas empresas que pagam pura e simplesmente o salário mínimo e nem por isso deixa de existir fila na porta daquela empresa, de gente procurando emprego.”


Falamos, então, da situação individual das empresas e perguntamos se ele toma conhecimento dela antes de fazer uma reivindicação, se lê os seus balanços, falamos da diferença entre a situação das empresas nacionais e a das multinacionais, que têm sua matrizes a escorá-las financeiramente, falamos no prejuízo da Ford no ano passado, de Cr$ 280 milhões, que ela pode suportar impunemente, enquanto um prejuízo semelhante de uma empresa nacional poderia significar seu fechamento. Lula não acredita em balanços e nem no prejuízo da Ford e nem tampouco em diferença entre patrões nacionais e patrões multinacionais. -“Para os, trabalhadores, patrão é patrão, seja nacional ou internacional.”


 Falamos na melhora da mentalidade do empresariado brasileiro nestes últimos 14 anos, na consciência que eles adquiriram de que a empresa não é propriedade deles, no sentido de que possam fazer o que bem entenderem sem olhar o interesse coletivo, o interesse social. Lula concorda, em parte, mas acha que em termos do relacionamento com os empregados nada mudou: - “A choradeira é a mesma e os lucros crescem cada vez mais.”


E mostra como têm crescido algumas das grandes empresas do seu setor. - Mas isso é investimento, é criação de novos empregos. - “Ninguém vai investir dinheiro pensando em emprego, vai investir pensando em lucro.”


- Mas lucro é o objetivo de todo mundo e não tem nada de imoral ou de nocivo. Lula não está de acordo com a política de investimentos do governo e na sua crítica, chega até ao programa nuclear. - “Acho que temos de crescer dentro da nossa realidade. O Brasil pensa em usina nuclear quando poderia produzir alimentos, e o mundo está carente de alimentos. -


 Uma coisa não impede a outra. Eu até não sou simpático à política nuclear do Brasil, mas não se pode pensar só em plantar feijão quando se está comprando 4 bilhões de dólares de petróleo num ano. Lula não aceita o argumento. Para ele, seria melhor produzir álcool. - “No Brasil já faz alguns anos que se fala em plano do álcool e investimos bilhões e bilhões, sei lá, até a capacidade de endividar-se a nação numa usina nuclear, quando poderíamos investir muito menos na criação de engenhos, na plantação de cana, de mandioca, de batata.”


Paulo Mendonça interrompe com uma pergunta: “Você identifica o governo com o patronato?” -“Eu diria que o patronato é o próprio governo. Eu acho que o poder econômico é o governo. Eu não consigo entender, como trabalhador, a necessidade da construção de uma ponto como a Rio-Niterói; eu não consigo entender a construção de uma Imigrantes, quando poderíamos construir estradas de ferro. São coisas assim que o trabalhador, por mais humilde que seja, vê, mas não entende.


- O que você preferiria: ser empregado de um patrão particular ou ser empregado do governo? - “Como empregado eu preferiria ser empregado daquele que me pagasse mais.”


 Explico que não é esse o sentido da pergunta. O que eu queria saber é qual é, na sua opinião, o regime político-econômico que proporciona melhores oportunidades para o trabalhador melhorar sua situação material e até subir na escala social. Lula não está interessado na questão de subir na escala social. Ele não cogita de, um dia, deixar de ser um assalariado e nem mesmo de que seu filho possa não vir a ser um assalariado.
- “Num país onde a distribuição de renda fosse em igualdade de condições – aí pouco importaria que eu fosse um torneiro.”


Quem é o culpado pela má distribuição de renda no Brasil? Falamos na carga de impostos que pesa sobre os brasileiros – pessoas físicas ou pessoas jurídicas – proporcionalmente ao nosso grau de desenvolvimento uma das mais pesadas do mundo, nos encargos sociais e econômicos do governo, no desempenho dos quais o governo, indiretamente, distribui a riqueza de forma mais equitativa do que aquela sugerida pela gritante diferença entre indivíduos ricos e indivíduos pobres neste país. Lula não simpatiza com a forma como o governo distribui a renda na forma de benefícios indiretos. Ele aponta as diferenças entre as regiões ricas do país e as regiões pobres, mostra como a região sul recebe a parte do leão e conclui que “a melhor distribuição de renda seria feita a partir do momento em nos preocupássemos em criar um mercado interno.” -“Quando eu digo que o trabalhador precisaria ganhar o suficiente para usar um terno bonito, para ter um carro, para ter uma televisão a cores, para ter, enfim, aquilo que ele produz, quando ele puder possuir tudo isso nós teremos realmente um Brasil mais rico, porque teremos um Brasil com poder aquisitivo interno razoável.”


Ele diz que não aprendemos nada com a história de outros países que seguiram essa evolução, onde primeiro se criou o mercado interno para só depois se cogitar de conquistar o mercado externo. - “Aqui a gente procura exportar aquilo que nós não temos, aquilo que o brasileiro não pode ter. Exportamos automóveis, por exemplo, quando a maioria dos brasileiros não pode ter automóvel, exportamos alimentos quando a grande maioria dos brasileiros é carente de alimentos. Não há poder de compra do povo, não há uma programação de distribuição interna dos bens, não há uma preocupação nesse sentido.


Quanto aos impostos que o empresário paga ele reconhece que são pesados, mas não admite que isso justifique os salários baixos: - O imposto que ele paga não diminui o lucro dele, mas sim aumenta o preço do produto que ele fabrica, o que torna mais difícil a aquisição desse produto pela população. Se ele tivesse que vender por 100 e pagasse 50 de imposto e ele ficasse com 50; mas ele não fica. Ele quer ganhar os mesmos 100 pagando 50 de imposto. Então se torna realmente difícil para o trabalhador participar e se torna, eu diria, até fácil, para o empregador, ganhar.”


 Lula fala, então, nos truques utilizados pelas fábricas de automóveis para iludir os limites impostos pelo CIP, com alterações mínimas em novos modelos de automóveis que justificam maiores aumentos e com a distribuição, a critério delas, dos aumentos globais permitidos, entre os diversos modelos que fabrica, aumentando mais os de maior vendagem e menos os de menor. O CIP, para ele, é uma enorme burla. - Você acha então que o governo prejudica deliberadamente o trabalhador, que faz isso de propósito com uma finalidade política qualquer? Ele acha que o governo é mal informado, que existem pessoas que levam ao governo muitas inverdades, muitas coisas que não condizem com a realidade”, e afirma: - “Dizer, por exemplo, que o aumento de salário e inflacionário é mentira.”


 - Mentira, não. É um dos fatores inflacionários. - Não, não. O aumento do salário seria inflacionário se ele se sobrepusesse à produtividade. Se o trabalhador produzisse 10 e recebesse 11 seria inflacionário. Mas, hoje, ele produz 10 e recebe 3. Como é inflacionário esse salário?


- Você sente o governo como um árbitro ou você sente o governo como um adversário? - “Eu acho que o governo é um adversário pelo simples fato de querer ser tutor de tudo, quando poderia assumir uma posição muito mais política e ficar de fora, deixando que nós trabalhadores brigássemos diretamente com nossos empregadores, sem a intervenção do Governo.”


- Mas então deixa eu fazer a pergunta que já fiz e você ainda não respondeu, desta vez de uma forma mais precisa: isso que você acaba de dizer significa que você acha que o regime liberal-capitalista é mais interessante para trabalhador do que o regime socialista? Permite que o trabalhador atinja mais facilmente os seus fins? - “Eu diria que o sindicalismo só é forte onde existe a ganância de poder, a ganância de ganhar bem, a ganância de participação. Só é forte nos países capitalistas.”


A resposta confirma aquilo que eu chamaria de a castidade ideológica do Lula. Pela primeira vez na história do sindicalismo brasileiro surge um líder sindical – ou um dirigente como ele deseja ser chamado – em estado de pureza. Se vai continuar assim depois que passou a ocupar as primeiras páginas dos jornais, depois que passou a ser vedete de televisão, depois, afinal, que a liberdade de imprensa permitiu que ele, quer queira quer não, passasse a exercer uma liderança política, só o futuro dirá. Mas, temos a certeza de que, no dia em que os bispos da CNBB, os estudantes brasileiros e os próprios políticos deste país adquirirem uma mentalidade como a dele, revelarem o mesmo grau de maturidade, então a democracia brotará espontaneamente aqui, como o capim depois de uma queimada. Durante quatro horas de conversa franca e descontraída, gravada em quatro fitas cassete que resultaram em 140 laudas de jornal, Lula exercitou a prática em que se iniciou depois que ouviu seu irmão contar o que sofrera na prisão: dizer o que pensa. Sem medo, sem restrições mentais ainda quando sabia que podia ferir os que o ouviam, no caso nós, e os que irão ler o que nos disse, ou excitar o sonho dos poderosos. Sem medo e sem restrições mentais quando ele diz que o trabalhador deve ter a mais ampla participação da vida política da nação: - “Eu acho que o trabalhador tem que ter participação em tudo. É lógico que o trabalhador tem que ter participação na política, enfim, eu entendo que a classe trabalhadora, quando chegar a época, tem que escolher os seus candidatos, ela tem que lançar os seus candidatos. Eu acho que o trabalhador deve participar de todas as decisões da nação, até da questão da energia nuclear o trabalhador teria que participar. O que não pode, o que eu acho ruim é que apenas meia dúzia de pessoas decidam tudo numa terra de 120 milhões de brasileiros. Nós não podemos esperar que o governo também abra todas as portas para a gente. Nós temos que forçá-lo a abrir, nós temos que ficar quebrando a fechadura lá. Quer dizer, a porta está fechada, vamos arrombar. Eu acho que a responsabilidade não é do Geisel, não é do governo brasileiro, mas dos 120 milhões de brasileiros para forçar que a coisa aconteça. Eu acho que pelo menos estou me propondo a ocupar um espaço que existe aí e tentar forçar essa barreira... Mas se cada um forçar um pouquinho a gente vai ocupar esse espaço.”


 Sem medo e sem restrições mentais quando, interrogado sobre o que achava mais importante nessa greve que ele liderou, se os aumentos obtidos ou se o precedente aberto, respondeu: - “Não, eu acho que o mais importante não é o percentual, eu acho que o mais importante foi o trabalhador descobrir que é possível medir forças com a classe empresarial. Eu acho que o mais importante foi o trabalhador descobrir, por exemplo, que greve não é sinônimo de baderna, que greve é isto, que existe em nível de consciência, de participação política. E a partir do momento em que o trabalhador descobriu que não é tão difícil fazer uma greve, que não é tão difícil usar a arma mais importante que ele tem, eu acho que as coisas podem se tornar mais fáceis para a classe trabalhadora, sem nenhuma baderna, sem querer ser contra a empresa, sem querer quebrar a empresa, sem querer fazer nada disso, mas pura e simplesmente querer fazer uso daquilo que é mais importante, na relação capital e trabalho, que é a mão-de-obra. E parar de produzir, você entende? Eu acho que isso é fundamental e o trabalhador descobriu isso. E isso não quer dizer, como muita gente fala, que agora o trabalhador vai fazer greve todo dia, toda hora, que vai levantar e dizer: ‘não, hoje eu estou de greve’. Não existe isso, eu acho que não existe isso, sabe? Eu acho que existem essas coisas quando se vive alguns momento de exceção, porque se nós tivéssemos um sindicalismo livre, onde o sindicato pudesse representar a classe trabalhadora, não existiriam tomadas de posição da classe trabalhadora à revelia inclusive dos sindicatos.”


Sem medo e sem restrições, quando, em tom de acusação, se referiu à dispensa de funcionários do Estado de São Paulo; sem medo e sem restrições mentais quando criticou o comportamento de certo tipo de jornalista, como aquele que foi procurá-lo num bar onde jogava bilhar e pretendeu criticá-lo: - “Eu estava jogando bilhar e chegou um jornalista: Ô Lula (o jornalista falava de um encontro do Lula com estudantes, que presenciara), eu acho que tenho que lhe dar os parabéns. Só que eu acho que você estava errado ao responder as perguntas daquele estudante. Eu não admito que trabalhador de salário mínimo use terno bonito. O cara chamou a atenção de todos os caras que estavam no bar. Eu falei: está a fim de brigar comigo ou está a fim de quê? E falei: você sabe de uma coisa – eu vou falar um palavrão aqui – vá pra p... - “Porque, primeiro, eu não sou trabalhador de salário mínimo; segundo, se eu pudesse eu me vestia muito melhor do que me vesti naquele dia e posso lhe garantir até que muitos trabalhadores, na minha profissão, que ganham muito mais do que você, que é jornalista. Você quer ter o direito de ter um carro e eu tenho que comer num cocho. Quando os estudantes resolveram fazer, outro dia, um ato público para angariar esmolas para a classe trabalhadora eu fiz a nota oficial – que fossem dar esmola para a mãe deles...”


Sem medo e sem restrições mentais quando ele contou o caso de uma revista que mandou-lhe um repórter, com fotógrafo e tudo eu queria fazer uma matéria sobre a vida de um trabalhador da sua categoria: - “Chega um pessoal no sindicato: Pô, a tente precisava pegar um trabalhador. Então eu peguei um ferramenteiro da Volkswagen e falei: vai entrevistar o rapaz na casa dele. Então foram. E chegou lá o fotógrafo e disse: Ah, pombas, eu não vou fotografar a sua casa porque a sua casa tem carro; isso não é casa de trabalhador. A concepção que se tem de trabalhador é que ele tem que ser miserável, ele tem que morar em barraco. É uma concepção errada que se faz do trabalhador que tem casa realmente luxuosa para a capacidade do trabalhador. É o mínimo que ele quer de conforto.”


Lula, evidentemente, sabe melhor do que ninguém que somente um número mínimo de trabalhadores neste país poder ter uma casa ou um automóvel. Ele mesmo disse, na nossa conversa, que 70% dos favelados de São Paulo são trabalhadores da indústria de automóveis. E é exatamente esse, e apenas esse, o sentido da sua luta: ele quer que o maior número possível de trabalhadores possa ter casa e automóvel, possa ir pescar no domingo, possa ter um nível de vida compatível com a dignidade humana, como têm os trabalhadores da Suécia ou da Alemanha. E é a singeleza desses objetivos, é a ausência de qualquer conotação ideológica na sua atuação que irrita os ideologicamente engajados da imprensa, da política, das universidades, que até agora viram baldados seus esforços para manipulá-lo em benefício dos seus interesses políticos ou ideológicos, que nada têm em comum com os interesses que Lula defende.



Senhor Vogue, julho de l978
Entrevista concecida a Ruy Mesquita

Um comentário:

Unknown disse...

Olá, Jurema,
meu nome é Pedro e estou trabalhando para uma senhora, Ilka Marinho Zanotto, que escreveu durante um tempo na Revista Senhor Vogue, que hoje em dia, infelizmente, não é muito conhecida. Pesquisei, pesquisei e encontrei seu blog. Você, por acaso, pode me ajudar em uma pesquisa? Procuro pela íntegra dos artigos dela. Você possui muitos exemplares da Revista? De quais anos?

Muito obrigado,
Pedro